domingo, 5 de julho de 2009

O homem trabalhou a vida inteira em seu projeto...

O homem trabalhou a vida inteira em seu projeto e naquele dia finalmente via tal obra chegar ao fim. Feliz como um escravo recém liberto, porém meio perdido sobre o que fazer com o tempo livre que teria (caso que creio eu ocorreu com o escravo também), resolveu comemorar como somente um homem pode comemorar.

E vai gole um, gole dois, gole três, gole quatro, gole cinco, copo um, copo dois, copo três, copo quatro, copo cinco, garrafa um, garrafa dois, garrafa três, garrafa quatro, garrafa cinco, engradado um, engradado dois, engradado três, engradado quatro, engradado cinco, saidera um, saidera dois, saidera três, saidera quatro e finalmente saidera cinco.

Se ele comemorou sozinho ou com amigos; não sabia. Se fez algo mais do que beber; não sabia. Como chegou em casa; não sabia. Com os olhos inchados da noite; não sabendo se por conta da bebida ou por ter dormido um sono acumulado de anos por conta do projeto de uma vida inteira; ele levantou e ainda estava escuro.

Se arrastou pela parede buscando o interruptor e pela primeira vez percebia o quão irregular era a construção da casa. Quando aperta o interruptor, a luz não acende. Fazia anos que ele não reparava em sua casa e ele precisava da luz para se encontrar, mas ela se recusava a acender. O homem busca a janela, guiando-se pelo frio crescente de uma corrente de vento que nunca sentiu no escritório. Ele estava fadado ao fracasso pois a janela se abriu e o escuro permaneceu. Pelo amor de Deus! Que horas são! gritou. A luz vermelha do seu rádio-relógio, aparelho que o homem todo dia de manha xingou, hoje não se prestava a seu serviço, como se quisesse vingança das ofensas.

O homem com dificuldade saiu daquele lugar, já com dúvidas se era mesmo seu quarto, para ir até a sala, onde estava o computador. Lá chegando a muito custo, constata que seu companheiro (um investimento de quatro mil, quinhentos e dez reais) não funcionava. O homem pensou em ligar para alguém e perguntar que horas eram, mas não lembrava se tinha telefone em sua casa e resolveu não se dar ao trabalho de procurá-lo. Abriu a janela da sala e se apoio nela. Ninguém passava na rua e o homem, isolado em sua casa, precisava saber que horas eram.

De repente um som diferente. Com intervalos precisos. O homem nem sabia que ainda tinha aquilo, algo tão velho em sua parede era a prova de seu descaso para com sua moradia. (Pra mim é a ironia de um perverso autor, que dá a solução mas cobra um preço).

Mas como ver as horas? Felizmente o homem fumava. Ainda bem que o vício lhe acompanhava desde os doze anos e o hábito lhe era amigo, fazendo com que dormisse sempre com o maço e o isqueiro ao seu lado. Acendeu o isqueiro e viu o ponteiro religiosamente estacionado no número seis, enquanto os outros passeavam em circunferência, um com mais eficiência e o outro com desprezo.

Aproveitou o momento para acender um cigarro, talvez como consolo, afinal, mesmo sabendo que eram seis horas, seriam seis da manha ou seis da noite?

A dúvida rapidamente consumiu o cigarro e consumiria o maço, se o homem encontra-se os cigarros que apoio naquele escuro. De quatro no chão, buscando cegamente seus cigarros, o homem mostrava o quão humilhante era a situação. Como um homem que havia trabalhado uma vida inteira num projeto tão grandioso, que o havia concluído com maestria, talvez uns dois ou três anos mais cedo que os outros, podia estar desorientado a ponto de não saber que horas eram? Como o homem podia ser tão dependente de máquinas? Da energia? Da luz? Ou pior: não encontrar seus cigarros, tendo que tatear a esmo de quatro?

O homem nem questionou se ele realmente precisava saber que horas eram. Que diferença isso faria pra vida dele? Era a força do hábito. O homem não levantou e mijou. Ele levantou e quis saber que horas eram. Um hábito da vida corrida. Condição sine qua non para estar em sintonia com um mundo regulado. Pobre do homem desorientado.

Da janela aberta veio um facho de luz fulminante. Vendo o cigarro iluminado alguns centímetros a frente de sua mão, ele se virou para a fonte de tal luz e não suportou a força, voltando ao escuro do fechar dos olhos. Aos poucos ele abriu as pálpebras, mas sentia dificuldade para se acostumar com aquilo. Lhe queimava as retinas.

Era de manha e o sol nascia. O sol de toda manha, desde que o mundo é mundo. Foi essa banalidade que cegou o homem, com necessidade de saber que horas eram, dentro de sua casa sem energia, enquanto buscava no escuro e de quatro um maço de cigarros. E no escuro o homem ficou. Tão dependente das máquinas e dos outros, mas sem o saber, sempre considerando-se independente, acabou por ficar preso no escuro dele mesmo.

Quando a energia elétrica de sua casa voltou, não fazia mais diferença. Sentado no chão e apoiado na parede irregular fumando, o homem minimizava a situação ridícula justificando que sua missão estava completa: ele havia concluído seu projeto e achara seus cigarros antes da desgraça. E esse consolo consumiu seu segundo cigarro da eternidade de um maço. E pela eternidade que durou sua escura vida ele passou fumando e contando as horas graças ao som do relógio. A partir das seis da manha, a cada sessenta tiques do relógio ele acrescentava um minuto a sua cegueira. E assim foi até o fim do maço de cigarros e da bateria do relógio.

5 comentários:

  1. Gostei muito do texto (realmente sem metáforas e da maneira que eu gosto). Crítico, abordando um assunto cotidiano de qualquer um (tempo, cigarro, trabalho).

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  2. As vezes cigarros e tiques de relógio são tudo o que realmente interessa.

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  3. aê!

    bem-vindo!

    gostei do texto! mesmo!

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  4. Eu vejo este texto assim: Até que ponto nós pensamos no que fazemos? Até onde questionamos as necessidades mais básicas como necessidades, pois as vezes elas podem ser apenas hábitos gerados pela tradição e não algo eletivo, do qual nosso pensamento se ocupa para pensar a respeito. Outro ponto é a dedicação desse homem que o fez cego para as próprias necessidades, para sua própria vida.

    O preço da dedicação pode ser o desperdício do seu precioso tempo de vida.

    A dedicação do homem ao projeto e o cigarro que ele fuma apresenta as formas do homem moderno de se desintegrar diante dos problemas. Ao passo que o projeto consome seu tempo de vida o cigarro também o faz. É como se ele fosse um lápis e de ambos os lados houvessem apontadores que nunca param de funcionar. Ou seja não há escapatória, pois de uma forma ou de outra estaremos subordinados a alguma situação em algum momento.

    Parabéns, mas acho que esse texto ainda pode ser muito melhor, pois afinal você é o Rafael Potenza.

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