segunda-feira, 20 de julho de 2009

O homem tinha a mania de encarar...

O homem tinha a mania de encarar todas as decisões de sua vida como uma brincadeira de sorte.

Assim foi no dia que conquistou sua atual mulher. Se a bituca de cigarro caísse no lixo (e olha que a distância era razoável e sua mira torta), ele iria tirá-la pra dançar. A bituca caiu como se atraída por um imã, e a dança virou matrimônio.

Assim foi no dia que ele tentou arriscar no emprego. Ele queria se lançar no mercado, pois seu ofício já estava desgastado. O primeiro passo era pedir as contas, e decidiu se devia ou não, contando. Virou o caneco sobre a mesa e contou quantos clipes ali havia. Ele passava adiante muitos deles todos os dias e um mesmo tanto retornava a sua mesa acompanhado de relatórios, memorandos, ofícios, contratos... Se fosse um número impar, pedia as contas e arriscava. Se fosse par, parava por ali sua maluca ideia. Foram 57 clipes. Talvez um recorde de clipes numa caneca que nasceu pra conter café. Quando pediu a demissão, seu chefe e ele conversaram muito e uma promoção foi oferecida.

Sem se dar conta, todas as decisões de sua vida passavam por esse controle de qualidade. Um dia deixou de embarcar num avião quando delegou a responsabilidade ao acaso. Se o cara na sua frente na fila puxasse assunto, aquele avião era mortal, caso contrário podia... e não é que o homem lhe desejou bom dia e perguntou o destino? Cordialmente o homem respondeu e não embarcou. O avião, claro, não caiu, mas o homem não iria contra o acaso que ele mesmo regulava.

Triste do homem que joga com a vida assim. Hoje sua situação era diferente. Se a vida deste homem parecia banal demais pra correr riscos brincando de arriscar, agora a coisa havia mudado de figura. A sua frente havia um corpo morto.

Sua mão suja de sangue não escondia a culpa. O motivo, o método e a vítima eu desconhecia, apenas presenciava o momento da decisão: se entregar ou fugir? Não seria fácil decidir naquelas circunstancias: um hotel barato a beira de estrada, uma mulher que ninguém daria falta, bons advogados e dinheiro; tudo isso ao seu favor. Contra ele, o fato de não saber ser um criminoso, ter que conviver com a culpa e o remorso, isso sem falar em viver foragido.

E o homem com esses raciocínios já tinha até pensado demais para alguém acostumado a decidir as cegas. Quando se lembrou do hábito, deu razão ao vicio e se lançou a sorte. Se a luz do quarto piscasse ele... a luz piscou.

O homem olhava a luz que brilhava intensamente após a brusca pausa na sua função. Maldita seja ela que atendeu aos seus anseios antes de concluído o desejo. A piscada seria sinal para fugir ou se entregar? Ele não havia tido tempo de pensar. Precisa de outro teste.

Um momento como esse e o homem passando a responsabilidade. Para não arriscar sua pele, deixava na mão do outro; um outro desconhecido e arbitrário. Esperto como só o homem pode, não resolvia com a moeda – o velho cara ou coroa – pois sabia que o símbolo que este ato carregava era mais forte que a própria decisão que tomava. Ele usava o coditiano, abusando de acidentes rotineiros, transformando a vida em benefício próprio. E assim ele era o senhor da sua sorte, pois dava sentido ao acaso sem função nenhuma - se uma lâmpada piscasse, se alguém caísse, se a mulher de verde fosse feia, se o carro parasse no vermelho. O cotidiano transformado era o poder deste homem arbitrário.

Mas diante da lâmpada, o homem se sentiu sem poder. Ela não respeitou as regras. Ela não servia. Mais uma vez, o homem precisava de outro teste.

O revólver tingido do vermelho do rosto da falecida foi o escolhido. O homem tirou todas as balas do tambor e devolveu somente uma. A bala podia estar ou não na mira do cano quando ele apertasse o gatilho. Mirou num quadro da parede – se o quadro... – ele engatilhou a arma – fosse atingido por algo, ele então... a arma disparou e o quadro sobreviveu. O homem não sentiu seu dedo mexer, mas o gatilho tinha sido puxado. A ansiedade matava o raciocínio e assim, mais uma vez, o acaso, sem querer (ou querendo), não compactuava com o homem.

O tempo era pouco e o homem precisava se decidir. Mais do que nunca, ele precisava decidir. Se o corpo voltasse a vida, ele fugiria. Estava decidido.

De joelhos em frente ao corpo, o homem ficou, com olhos fixos nos peitos nus que deveriam se mexer com a respiração, mas não mexiam. A espera era indeterminada, a hipótese absurda. O corpo nunca voltaria a vida e talvez essa fora a atitude mais nobre do homem naquela noite. Seu inconsciente havia pregado uma peça no homem dado ao acaso, lançando uma hipótese maluca, na esperança dele acatar a decisão e se entregar. No fundo o homem era justo.

Foram necessárias três tentativas para o homem finalmente conseguir atirar em sua própria cabeça. Se fosse uma roleta-russa qualquer, no primeiro puxão do gatilho sem fim desgraçado, o homem acostumado com o acaso daria-se por satisfeito e tomaria como resposta que o acaso lhe mandava viver. Mas este homem, não. Esta foi a primeira e a última decisão do homem como homem, não como acidente. Ele queria se matar. Mesmo com o acaso tentando o homem à vida por duas vezes, ele já havia se decidido pela morte quando o terceiro puxão foi dado.

2 comentários:

  1. Ele queria encarar a morte.

    A única coisa que realmente poderia dizer se ele viveria ou morreria seria a morte e não suas brincadeiras de sorte.

    Como ele sempre jogou e se dava bem ele queria um novo desafio, que realmente pudesse dar-lhe o que buscava, uma solução para seu jogo.

    [Morte x Sorte]
    Algumas frases são impagavemlmente sagazes Rafa: "Esta foi a primeira decisão do homem como homem, não como aciedente." "... a dança virou matrimônio.", "Ele usava o coditiano, abusando de acidentes rotineiros, transformando a vida em benefício próprio. E assim ele era o senhor da sua sorte, pois dava sentido ao acaso sem função nenhuma -"
    Abraços e keep on writing.

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  2. Acho q esse foi seu melhor texto. Impecável!

    te admiro bastante, cara! Parabéns!

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